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sob o som ebule

por Bruno Renan
bruno renan

Café preto, requintado, sem açúcar; fones no volume recomendado, pouco sujos de cera de ouvido. Coltrane, o maquinista, parte numa viagem louca pelo improviso, ameaçando a batera e o baixo, atritos da cadência; o piano solta acordes em pequenos intervalos para aliviar a tensão do movimento principal — agora acho que coloquei açúcar demais. É óbvio que não sei porra nenhuma de música e menos ainda de instrumentos musicais. Verdade é que até sei fazer uns acordes (acho até impressionável saber umas posições de diminutos, nonas etc.), algumas escalas, mas não conheço realmente qualquer teoria musical. Só sei que dois e dois são quatro e soa bem ao ouvido, e que cinco já é uma ​blue note que deve ser usada com cautela. Por isso não manjo de jazz. Entretanto, por qualquer razão que só Hume poderia tentar explicar, o gênero sempre me remete a um cafezinho bem quente, gosto de tom marrom — Hume apostaria todas suas fichas de empirismo no ressaibo amargo e melancólico de ambos, mas não estou certo disso, nem de serem a causa aqueles filmes americanos em que sempre há cenas de algum maluco tomando café próximo a um toca-disco —, embora a imagem de concreto e o cheirinho de óleo de motor reproduzam a experiência mais viva dessa minha idiossincrasia musical. É louco pensar que para muitos o único momento de jazz é aquele jingle quebrado da linha 4-amarela do metrô, para outros sobra tempo pra escutar um Miles Davis no spotify, ou algum quarteto num rolê na Vila Madalena no final de semana. De qualquer forma, a vibe é perceber os improvisos nos espaços mesmo com a cadência maquinal do cotidiano, esse jogo entre afastamento e repouso que sempre pede pela tensão dissimular o enfadonho: louco é observar como “Autumn leaves” está sempre estampada no semblante coletivo da multidão no horário de pico, como “Donna ​Lee” salta sob os pés daquele fulano atrasado no seu primeiro dia de trabalho, como “Tenderly” sai embasbacada dos olhares do casal voltando de trem do cineminha de sábado à noite. Para mim Miles Davis está sempre naquele corrimão amarelo que observo no túnel do metrô; Wes Montgomery, tirando aquele som com o polegar, no Viaduto do Chá próximo às 17 horas; Herbie Hancock reluzindo nos lugares mais decadentes; Chet Baker no combo de trem e ônibus; e Chick Corea no alívio de retornar à casa quando o relógio já ultrapassa as 20, 21 ou 22 horas da noite. Agora nessa coda (de volta ao repouso do meu café) começo a acreditar que isso tudo é tão pequeno, tão diminuto que poderia caber numa nota soada por Parker e ainda sobraria uma pausa, pois talvez o jazz seja uma tessitura maior que não me permite a deslindar.


Bruno Renan, estudante de Letras na Universidade de São Paulo. É desenhista amador e péssimo praticante de basquetebol. Gosta de escrever nas horas vagas e planeja transformar seus textos em quadrinhos e zines.

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